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terça-feira, 18 de novembro de 2008

São muitas as verdades num mundo de natureza vária

O lançamento simultâneo em Portugal, Brasil e Moçambique de Venenos de Deus, Remédios do Diabo é por si uma boa notícia para os que se interessam pelos rumos da ficção em língua portuguesa, pois sugere um avanço na aproximação entre universos ainda tão distantes a despeito das relações historicamente construídas. E confirma entre nós o reconhecimento de Mia Couto. Bastante conhecido nos círculos portugueses e traduzido em tantas línguas, o mais prestigiado escritor moçambicano precisou de mais tempo para que o mercado editorial brasileiro levasse em conta, por exemplo, o grande interesse despertado entre o público universitário, o único segmento que, desde os anos 90, tinha acesso a seu trabalho.
Nos últimos anos, felizmente, abriu-se um espaço para as literaturas africanas e o autor e seus textos vêm merecendo maior atenção, das editoras, da crítica literária, da mídia. Em 2007, O Outro Pé da Sereia ficou entre os dez finalistas do Prêmio Portugal Telecom e foi o vencedor do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura.
Em Venenos de Deus, Remédios do Diabo, o sexto romance, Mia Couto, como aliás não é raro em sua trajetória, inicia o processo de sedução já no título. Assim, depois de Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra e O Outro Pé da Sereia, para citarmos apenas dois de seus livros, ele vem nos provocar com Venenos de Deus, Remédios do Diabo, que tem ainda como subtítulo As Incuráveis Vidas de Vila Cacimba. Num jogo pautado pela ironia, o peso da contradição será dominante na narrativa que se desenvolve sob uma atmosfera um tanto nebulosa, montada sobre diálogos que tendem a desnortear o leitor, transmitindo-lhe a idéia de que está diante não só de uma terra estrangeira, mas de um mundo que requer outros sentidos para ser penetrado. A opacidade não é defeito, nem é gratuita, é constitutiva de um projeto.
Uma vez mais, o espaço tem grande significado na narrativa de Mia. Vila Cacimba, a aldeia onde se desenrola a trama, pode ser encarada como uma metonímia de Moçambique, talvez do continente africano. Ao caracterizar o médico como português, insinua-se que os séculos de colonialismo não permitiram uma real aproximação entre os patrimônios culturais, pondo em causa o argumento luso-tropicalista que de vez em quando ressurge. Note-se, entretanto, que o essencial não é propriamente falar de sua terra e sim trazer à pauta as muitas verdades que se confrontam num mundo povoado por misturas de natureza vária. Para isso, o autor baralha as personagens, colocando em movimento características que dificultam a sua apreensão, fazendo-as transitar num quadro de significados móveis, em que as coisas podem ser e não ser. E, como o médico estrangeiro, somos levados a um estado de dúvida que também desafia a nossa capacidade de leitura da realidade. Em síntese, da coexistência de mundos, de diferentes tempos e códigos, trata o autor, abordando um problema fulcral em nossos dias.
No conjunto da obra, esse romance se destaca por uma economia narrativa orientada pela concisão, em contraste com a tendência para a exuberância de outros textos. Aqui é tudo mais enxuto: o enredo concentra-se em Vila Cacimba, num curto espaço temporal, envolvendo poucas personagens: o médico português Sidônio Rosa, os casais Bartolomeu Sozinho e Dona Munda, Suacelência e Esposinha. Sobre as suas vidas, paira a figura de Deolinda, apresentada inicialmente como a filha de Bartolomeu e Dona Munda, por quem Sidônio se apaixonara em Lisboa, razão de sua vinda para a África. Nos nomes das personagens, projetam-se marcas de seu modo de estar no mundo, o que remete a certa atmosfera fabular, reiterando um traço indiscutível na obra de Mia: a evocação das tradições orais, matriz dominante no patrimônio cultural de seu país.
Em se tratando do autor, todavia, a combinação dos nomes leva também ao processo de construção da linguagem, sempre merecedor de sua atenção. Se renuncia à constância dos neologismos, um dos pontos de convergência com a obra de Guimarães Rosa, o escritor não deixa de cortejar a poesia na escrita da ficção, cultivando uma espécie de aderência entre o signo e o referente, como se observa não só relativamente às personagens, como também ao lugar. É fato que daí pode resultar a sensação de obviedade mas não se deve esquecer que a coincidência do idioma está longe de significar correspondência de contextos culturais. Vale, então, pensar no procedimento em alusão ao fundamento da poesia, ao desejo de recuperar a unidade perdida, de grande sentido numa sociedade tocada pela desagregação.
O recurso a uma forma de sabedoria popular é outro dado a confirmar a identificação com as tradições orais. Contrapondo-se à contenção no domínio dos neologismos, registra-se a presença de frases que trazem um tom de aforismo, como que procurando sintetizar uma verdade consagrada. Ressalte-se, porém, que no romance as sínteses formuladas pelas personagens atentam contra o senso comum, instituindo uma espécie de contraprovérbio. Em Mia Couto isso se liga à desautomatização do olhar, ato imprescindível para a compreensão do universo que a sua ficção nos traz. É um de seus modos de assegurar à literatura a marca do insólito, uma de suas funções e de seus encantos.
Por: Rita Chaves (professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na USP)

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