Durante alguns anos e à par dos meus estudos secundários na então Porto Amélia, terei sido considerado um dos melhores “borlistas assumidos” da urbe, dado os mais mirabolantes planos que urdia para iludir os porteiros das salas de cinema, salões de bailes e, até, de espeluncas do tipo “Zavala” em Montepuez, onde se dançava sungura com as mais badaladas, desdentadas e flácidas prostitutas.
No começo da carreira não raras vezes aguentei estoicamente uns bons puxões de orelhas, pontapés no traseiro e toda a sorte de impropérios, mas tudo isso era como que “ossos de ofício” a que me tinha de sujeitar para alcançar o objectivo último: ingressar e assistir ou participar de eventos sem pagar um tostão que seja, porque eternamente “teso”.
E aquele que anos mais tarde viria a ser um dos melhores arquitectos “prata da casa”, tímido apesar da sua avantajada compleição física, não tinha cachola suficiente para arquitectar o mais fácil ingresso nas matinés de fim de semana no cinema Pemba, edíficio aliás, com muitas brechas porque a cair de podre – O João Tique, pois é dele que me refiro, era, se assim se pode dizer, um pendura nas costas do “borlista-mor”.
Contratempos haviam nesta profissão, pois porteiros como o Paratapsi, um Hindu/Hippye, beberrão como poucos e dado a “charros; o hoje septuagenário Roldão da Conceição que dividia a vigia das entradas com a de “tocador” de viola-solo nos bailes no Vasco da Gama e no Desportivo; e o polícia da então PSP de nome Leal, uma vez a outra, não se distraiam das suas obrigações e a malta ficava cá fora.
Para aquilitar o quão as nossas peripécias eram perigosamente atrevidas para miúdos da nossa idade, cito com orgulho o termos assistido, sem que para tal pagassemos, a projecção do filme “Lawrence da Arábia” na inauguração do actual edifício do Cinema Pemba, a 9 de Dezembro de 1970; a actuação alguns meses depois na mesma sala do mestre da guitarra portuguesa Carlos Paredes e a inaguração do ainda hoje Hotel Cabo Delgado – ocasiões então reservadas à elite colonial residente.
Meses antes de abandonar a classe e arrumar as botas, ainda tive que pôr à prova os meus dotes de paraquedista calejado: entrar naquele que seria um dos últimos bailes de finalistas da Escola Comercial e Industrial Jerónimo Romero, contando-se entre eles, nada mais nada menos que o “borlista” Joâo Teodósio Tique e o Roque José Loforte, o mais velho dos sete rebentos que a nossa mãe comum tirou cá para fora.
Ora, não apenas porque o João e o Roque se iam apresentar de “smoking”, a minha presença no interior do salão onde ia decorrer o baile tornava-se tão obrigatória quanto seria considerado “panhonha” se, aos ouvidos dos meus comparsas, chegasse a notícia de que eu não lograra ludibriar o séquito de vigias montados pelo director Talhante, perdendo por isso mesmo uma oportunidade rara: é que nessa noite e naquele baile, os “Monstros” e o seu emblemático vocalista, de seu nome João Paulo, iam apresentar-se pela primeira vez em Porto Amélia. Decorria o ano de 1972/73, se a memória nao me atraiçoa.
Os “Monstros”, por aquelas alturas, eram aos nossos olhos, o mais bem sucedido exemplo de “grunhos” capazes de mostrar ao “estabelishement colonial” que os tempos começavam a ser outros, que não estavam a dormir sob a sombra dos valores lusos. Portanto, para nós os “Monstros” eram como que uma aragem até então desconhecida, que soprava do sul para fazer-nos sair da madorra cultural em que nos encontravamos no norte a ferro e fogo.
João Paulo era, como não podia deixar de ser, o menino bonito das moças mais lindas e, entre a rapaziada, objecto de admiração misturada com umas pontas de ciúme. É que o “tipo”, com a sua voz rouquenha, interpretando músicas de negros americanos, trajado provocadoramente de calças “La Finess” boca de elefante e camisas pinçadas, levava toda a àgua para o seu bico.
Foi ali e naquele longíquo ano que conheci o João Paulo e os seus companheiros e só em 2004, volvidos pouco mais de trinta anos, voltaria a encontrarmo-nos, não num salão de baile, mas no Centro Social da Rádio Moçambique, em Maputo.
Durante mais de trés décadas, dele e do que fazia ou vivia pouco ouvira falar. Aliás só o (re)conheci quando o Zeca Tcheco mo apresentou, circunstância que viria a desembocar numa acesa discussão sobre o rumo que a nossa música estava a trilhar.
Reflectindo agora sobre aquele frutuíto encontro, algumas interrogações me inquientam, sendo a primeira e fundamental: o que se passou na vida e carreira do vocalista dos “Monstros” para nos ter deixado orfãos despojados de um único registo sonoro com música composta e interpretada por ele?
É realmente sintomático que mesmo entre aqueles que criaram e com ele actuaram nos “Monstros” ou que, de outro modo partilharam, cá e lá fora, as suas vidas, não comentem ou escrevam sobre esta intrigante lacuna na vida do João Paulo.
Permito-me no entanto aferir que João Paulo, após o seu regresso, nunca conseguiu sair do marco de onde partiu: ou seja, parou no tempo e quando retorna à casa não encontra o mesmo ambiente que havia deixado quando zarpou – cantar os outros já era; muitos dos seus antigos companheiros tinham entretanto enveredado por outros e quiça bem sucedidos trilhos moçambicanos; cantar em clubes nocturnos ... é o que se sabe. E com um mercado de trabalho complexo que exigia já não o “interpretar” Otis ou Percy mas produzir Mocambique.
João Paulo foi apanhado de chofre por uma realidade e movimento culturais diversas das que deixou quando partiu e sobre as quais lhe faltaram capacidade e estaleca para absorver e agir. Ou seja estava, culturalmente falando, deslocado e, nesse estado, não tinha condições para se motivar e produzir, coisa que ele, salvo prova em contrário, nunca fez.
Daí até à frustração foi um passozinho, facto perceptível nas conversas que ocasionalmente tinhamos e onde se notava que as suas dissertações sobre a matéria em discussão não tinham sustentabilidade e contextualmente desencontradas.
Perante este “modus vivendi” do Soul-Music Man, aqueles que tinham a chave para repotenciar o que de bom o João possuía, nada mais fizeram do que tratá-lo com condescedência porque concluiram que dele nada poderiam aproveitar, a não ser o viajar nostálgico, de quando em vez, aos “bons velhos tempos dos ‘Monstros’”.
Não se afira desta minha reflexão que o “caso Joao Paulo” é o único em Moçambique, pois há os aos montes, até envolvendo figuras de outras áreas de intervenção cultural que não apenas a musical.
Mas como estou com a mão na massa, permitam-me citar apenas um exemplo.
Temos pois o “caso Júlio Silva” que, ainda que tivesse tentado entre nós após anos a fio em Portugal, se deu mal simplesmente porque a sua produção musical – provavelmente pensou que se tratava de algo novo para os que cá ficaram – não teve aceitação porque desenraizada e, mesmo assim, sem valor. Resultado: retornou para a Europa onde, espero estar enganado, se sente como peixe, mesmo em àguas que nunca lhe serão tão cristalinas como as que serviram para lhe limparem o primeiro infanto-dejecto na sua terra. Muitos outros, vivendo lá fora e que marcaram musicalmente, são demasiado “estranjas” para o nosso gosto.
Ao menos que todos eles fossem como o Gimo Abdulremane, dado a anualmente retornar à sua Ilha e, no meio do seu povo, religiosamente beber Mutxequele e Mwakenmwalo(*), inspirando-se, e ouvindo a malta gritar: “Wé Gimo, onnihiererani? Kunthikha Thó?” – Ó Gimo, porque nos deixas? Não voltas mais?.
No começo da carreira não raras vezes aguentei estoicamente uns bons puxões de orelhas, pontapés no traseiro e toda a sorte de impropérios, mas tudo isso era como que “ossos de ofício” a que me tinha de sujeitar para alcançar o objectivo último: ingressar e assistir ou participar de eventos sem pagar um tostão que seja, porque eternamente “teso”.
E aquele que anos mais tarde viria a ser um dos melhores arquitectos “prata da casa”, tímido apesar da sua avantajada compleição física, não tinha cachola suficiente para arquitectar o mais fácil ingresso nas matinés de fim de semana no cinema Pemba, edíficio aliás, com muitas brechas porque a cair de podre – O João Tique, pois é dele que me refiro, era, se assim se pode dizer, um pendura nas costas do “borlista-mor”.
Contratempos haviam nesta profissão, pois porteiros como o Paratapsi, um Hindu/Hippye, beberrão como poucos e dado a “charros; o hoje septuagenário Roldão da Conceição que dividia a vigia das entradas com a de “tocador” de viola-solo nos bailes no Vasco da Gama e no Desportivo; e o polícia da então PSP de nome Leal, uma vez a outra, não se distraiam das suas obrigações e a malta ficava cá fora.
Para aquilitar o quão as nossas peripécias eram perigosamente atrevidas para miúdos da nossa idade, cito com orgulho o termos assistido, sem que para tal pagassemos, a projecção do filme “Lawrence da Arábia” na inauguração do actual edifício do Cinema Pemba, a 9 de Dezembro de 1970; a actuação alguns meses depois na mesma sala do mestre da guitarra portuguesa Carlos Paredes e a inaguração do ainda hoje Hotel Cabo Delgado – ocasiões então reservadas à elite colonial residente.
Meses antes de abandonar a classe e arrumar as botas, ainda tive que pôr à prova os meus dotes de paraquedista calejado: entrar naquele que seria um dos últimos bailes de finalistas da Escola Comercial e Industrial Jerónimo Romero, contando-se entre eles, nada mais nada menos que o “borlista” Joâo Teodósio Tique e o Roque José Loforte, o mais velho dos sete rebentos que a nossa mãe comum tirou cá para fora.
Ora, não apenas porque o João e o Roque se iam apresentar de “smoking”, a minha presença no interior do salão onde ia decorrer o baile tornava-se tão obrigatória quanto seria considerado “panhonha” se, aos ouvidos dos meus comparsas, chegasse a notícia de que eu não lograra ludibriar o séquito de vigias montados pelo director Talhante, perdendo por isso mesmo uma oportunidade rara: é que nessa noite e naquele baile, os “Monstros” e o seu emblemático vocalista, de seu nome João Paulo, iam apresentar-se pela primeira vez em Porto Amélia. Decorria o ano de 1972/73, se a memória nao me atraiçoa.
Os “Monstros”, por aquelas alturas, eram aos nossos olhos, o mais bem sucedido exemplo de “grunhos” capazes de mostrar ao “estabelishement colonial” que os tempos começavam a ser outros, que não estavam a dormir sob a sombra dos valores lusos. Portanto, para nós os “Monstros” eram como que uma aragem até então desconhecida, que soprava do sul para fazer-nos sair da madorra cultural em que nos encontravamos no norte a ferro e fogo.
João Paulo era, como não podia deixar de ser, o menino bonito das moças mais lindas e, entre a rapaziada, objecto de admiração misturada com umas pontas de ciúme. É que o “tipo”, com a sua voz rouquenha, interpretando músicas de negros americanos, trajado provocadoramente de calças “La Finess” boca de elefante e camisas pinçadas, levava toda a àgua para o seu bico.
Foi ali e naquele longíquo ano que conheci o João Paulo e os seus companheiros e só em 2004, volvidos pouco mais de trinta anos, voltaria a encontrarmo-nos, não num salão de baile, mas no Centro Social da Rádio Moçambique, em Maputo.
Durante mais de trés décadas, dele e do que fazia ou vivia pouco ouvira falar. Aliás só o (re)conheci quando o Zeca Tcheco mo apresentou, circunstância que viria a desembocar numa acesa discussão sobre o rumo que a nossa música estava a trilhar.
Reflectindo agora sobre aquele frutuíto encontro, algumas interrogações me inquientam, sendo a primeira e fundamental: o que se passou na vida e carreira do vocalista dos “Monstros” para nos ter deixado orfãos despojados de um único registo sonoro com música composta e interpretada por ele?
É realmente sintomático que mesmo entre aqueles que criaram e com ele actuaram nos “Monstros” ou que, de outro modo partilharam, cá e lá fora, as suas vidas, não comentem ou escrevam sobre esta intrigante lacuna na vida do João Paulo.
Permito-me no entanto aferir que João Paulo, após o seu regresso, nunca conseguiu sair do marco de onde partiu: ou seja, parou no tempo e quando retorna à casa não encontra o mesmo ambiente que havia deixado quando zarpou – cantar os outros já era; muitos dos seus antigos companheiros tinham entretanto enveredado por outros e quiça bem sucedidos trilhos moçambicanos; cantar em clubes nocturnos ... é o que se sabe. E com um mercado de trabalho complexo que exigia já não o “interpretar” Otis ou Percy mas produzir Mocambique.
João Paulo foi apanhado de chofre por uma realidade e movimento culturais diversas das que deixou quando partiu e sobre as quais lhe faltaram capacidade e estaleca para absorver e agir. Ou seja estava, culturalmente falando, deslocado e, nesse estado, não tinha condições para se motivar e produzir, coisa que ele, salvo prova em contrário, nunca fez.
Daí até à frustração foi um passozinho, facto perceptível nas conversas que ocasionalmente tinhamos e onde se notava que as suas dissertações sobre a matéria em discussão não tinham sustentabilidade e contextualmente desencontradas.
Perante este “modus vivendi” do Soul-Music Man, aqueles que tinham a chave para repotenciar o que de bom o João possuía, nada mais fizeram do que tratá-lo com condescedência porque concluiram que dele nada poderiam aproveitar, a não ser o viajar nostálgico, de quando em vez, aos “bons velhos tempos dos ‘Monstros’”.
Não se afira desta minha reflexão que o “caso Joao Paulo” é o único em Moçambique, pois há os aos montes, até envolvendo figuras de outras áreas de intervenção cultural que não apenas a musical.
Mas como estou com a mão na massa, permitam-me citar apenas um exemplo.
Temos pois o “caso Júlio Silva” que, ainda que tivesse tentado entre nós após anos a fio em Portugal, se deu mal simplesmente porque a sua produção musical – provavelmente pensou que se tratava de algo novo para os que cá ficaram – não teve aceitação porque desenraizada e, mesmo assim, sem valor. Resultado: retornou para a Europa onde, espero estar enganado, se sente como peixe, mesmo em àguas que nunca lhe serão tão cristalinas como as que serviram para lhe limparem o primeiro infanto-dejecto na sua terra. Muitos outros, vivendo lá fora e que marcaram musicalmente, são demasiado “estranjas” para o nosso gosto.
Ao menos que todos eles fossem como o Gimo Abdulremane, dado a anualmente retornar à sua Ilha e, no meio do seu povo, religiosamente beber Mutxequele e Mwakenmwalo(*), inspirando-se, e ouvindo a malta gritar: “Wé Gimo, onnihiererani? Kunthikha Thó?” – Ó Gimo, porque nos deixas? Não voltas mais?.
* Bebidas fermentada e destilada com base na fruta Cajú