A sociedade angolana está «algo à deriva» e «perdeu uma série de referências» na sua história recente marcada pelos conflitos armados, disse em entrevista à Agência Lusa o escritor angolano Pepetela.
Apesar deste cenário, o escritor revela-se optimista quanto ao futuro do país, que diz estar a reorganizar-se de forma acelerada, mas chama à atenção para a urgência de criar condições para a «transmissão de valores para a juventude».
Pouco depois de apresentar em Luanda, na noite de terça-feira, 6, o seu último romance, «
O Quase Fim do Mundo», o Prémio Camões 1997, mostra-se preocupado com a juventude do país que, como o resto da sociedade, «navega à deriva», mas, pelo que representa quando se olha para o futuro, «merece especial atenção».
O escritor neste seu último romance narra o confronto de um grupo reduzido de indivíduos com o quase fim do mundo e tudo o que resta da humanidade está numa ínfima parcela de África.
Admite que, mesmo «de forma inconsciente», a forma como estas pessoas foram ultrapassando as suas diferenças é uma boa metáfora para o «acelerado apaziguamento dos espíritos» que está a acontecer numa Angola a experimentar os primeiros seis anos de paz em 32 anos de independência.
Considera, no entanto, «haver problemas graves» e que podem ainda «acontecer sobressaltos graves» com o aproximar das eleições legislativas apontadas pelo Presidente da República, José Eduardo dos Santos, para o mês de Setembro.
Pepetela entende que é importante a «transmissão de valores» para os mais novos e, «apesar de não ser religioso», que as igrejas podem ser importantes nessa tarefa.
Apesar deste quadro social, apenas seis anos de paz e uma juventude sem referências, o também autor de «Lueji, o nascimento de um império(1990)» admite que Angola está a reorganizar-se de forma «acelerada» e dá como exemplo deste «caminhar acelerado para a normalidade» a «diminuição da tensão» entre as pessoas nos mais variados cenários.
Na entrevista, Pepetela reflectiu ainda sobre a recente polémica que envolveu o escritor Angolano José Eduardo Agualusa, quando este disse que o primeiro presidente de Angola e uma das figuras emblemáticas do país independente, Agostinho Neto, era «um poeta medíocre», gerando um redemoinho de críticas na sociedade luandense.
«O que aconteceu - com Agualusa - é um sintoma de que há ainda muito caminho para fazer», apesar de defender que «as pessoas também têm - referindo-se a Agualusa - que saber onde falam, em que ambiente falam».
«É preciso ter consciência das consequências das palavras», adverte Pepetela que, sem querer ir muito mais além neste tema, admite que «houve muitos exageros», mas defende que o que se passou pode ser «útil», porque «quando se discute sai sempre algo de útil».
Apesar do optimismo assumido pelo criador da «Parábola do Cágado Velho» (1996), a Luanda de hoje não é a Luanda que «muitos daqueles que pensam o país há muitos anos e lutaram por ele» queriam ver como realidade.
Na narrativa de Pepetela, uma seita religiosa está por detrás do incompleto apocalipse. Essa não é, porém, a parte importante do livro, mas sim a forma como o grupo que restou do quase fim da humanidade interage.
Um dos exemplos mais claros é o de um boer sul-africano, com as suas características próprias, indivíduo fechado sobre si mesmo, que acaba por se revelar na sua humanidade e é paulatinamente aceite pelo grupo apesar das muitas reticências.
Foi um exercício de «perdão», resumiu o autor.
«Os africanos têm traumas históricos porque, durante muito tempo, sofremos as influências nocivas do `apartheid´ da África do Sul, e nós, em particular, sofremos com as guerras e agressões», lembrou.
«E há - na narrativa - muitas reservas em relação a essa personagem que, aliás, aparece exactamente por causa disso», assinalou ainda, sublinhando que acaba por acontecer um «perdão» na forma como este boer «se torna útil» ao grupo de sobreviventes do quase fim do mundo.
Ele - disse - «revela-se na sua humanidade» e acaba por ser «apenas mais um no grupo».
É como se, ao longo das quase 400 páginas de «O Quase Fim do Mundo», Pepetela assumisse a tarefa de proporcionar a catarse para as fricções históricas entre a África do Sul do passado, racista, e os restantes países africanos.
«Houve uma clara intenção de dizer algo como isto: esta é a humanidade que nós temos, são estas as pessoas, vamos aceitá-las como são», concluiu o escritor.