Edmundo,
Pedes-me que te caracterize. Pode parecer fácil, mas tu sabes que não é empresa fácil falar-se de um irmão, dificuldade acrescida ainda pelo facto de sermos irmãos etariamente próximos, além de amigos. Quando me falaste deste teu desiderato, lembro-me de te falar destes inconvenientes, e também de tu me insistires e eu não te conseguir demover. Creio, agora, que a insistência derivou do facto de saberes que é difícil recusar-te algo, ainda por cima de tão íntimo.
O que diria então de ti, Edmundo? Muito e pouco. É afinal isto que fazemos ao longo da vida cada vez que falamos.
A primeira coisa que te digo é que ao nascermos a seguir um ao outro impôs-se que percorrêssemos, praticamente, caminhos comuns, fecundássemos sonhos comuns e passássemos sedes e fomes comuns, vicissitudes que nos terão sedimentado valores comuns da vida. É por isto que muito do que te vou dizer não passará de um simples exercício de recordações.
Recordo-te que nascemos ambos em Inharrime, eu em Dezembro de 1952, e tu em Agosto de 1954. Um ano depois de tu nasceres, a nossa mãe foi transferida para Moamba, e tu acompanhaste-a, indo eu para a casa do nosso avô materno, o Rev. Jossefa Nhatitima, em Matacalane, no hoje distrito de Morrumbene. Não te lembras, e eu também só me lembro muito tenuemente por causa da nossa reduzida idade, que chorei amargamente por esta separação. Em 1959, porém, a mim te vieste juntar, recebendo dos nossos queridos avós a mesma educação, traduzida no rigor, no altruísmo e nos valores morais do metodismo, que penso ainda hoje guiarem as nossas vidas. Eis, provavelmente, uma característica que, mais do que a mim, te marca a existência: partilhares tudo com toda a gente, sem olhares a prejuízos que tal provoca em ti e aos teus mais próximos.
Prosseguindo, recordo-te também que alternavas a estadia em Matacalane com permanências mais ou menos prolongadas na Missão Metodista de Cambine, em casa do nosso tio Samuel Simão Sengo, antes de nos juntarmos, definitivamente, à nossa mãe, na Moamba, em meados dos anos sessenta, embora vivêssemos em Lourenço Marques, onde estudávamos.
Lembras-te que foi nos subúrbios laurentinos que também começámos a pequena labuta pela vida, nomeadamente vendendo hortícolas e legumes nos seus pitorescos bazares; lembras-te certamente da estratégia que junto congeminámos para a rápida fluência das nossas vendas, nomeadamente ao anuíres em ficar à frente da banca para que a curiosidade de seres ruivo atraísse clientes para os nossos produtos.
Também te lembras que foi em 1968 que acompanhámos a nossa mãe Cristina a Cabo Delgado, para onde fora transferida, como quadro da Saúde. Vês como já se passaram 40 anos, Edmundo? Lembras-te como foi em Cabo Delgado que iniciámos e percorremos a nossa juventude, uma fase da vida passada com intensas leituras, com muitos filmes e música dos tempos mais áureos do rock, razão para termos desenvolvido e formado modelos comuns da sétima arte e de literatura, um «ouvido» comum? Lembras que depois destes percursos viemos a encontrar-nos, por acaso, na Rádio Moçambique?
Apesar da acentuada convergência dos nossos percursos, há sempre pontes que tivemos que atravessar sozinhos, montes que escalamos sozinhos, vontades que adoptamos por circunstâncias próprias da nossa isolada existência. E como te vejo caminhando por esses atalhos, Edmundo?
Sabes que no nosso círculo familiar sempre te reconhecemos talentos e virtuosismos ímpares, qualidades com que nos deixas muito orgulhos. No que fazes, ou te dispões a fazer, poucos te questionam a qualidade. Mas se calhar é aí onde encontro algo, pequenino que seja, que permite atrever-me a contestar de ti. Penso, todavia, que é este o grande problema de alguns daqueles que foram escolhidos por Deus para provar a Sua infinita sabedoria: o pensarem que podem superar a justa medida dada por Deus para a expressão do talento.
Creia-me, meu irmão, que é quando pensas que algo estranho ao teu carácter te pode levar à superação das muitas qualidades que tens que menos gosto de ti.
Magoei-te? Espero que releves a minha sinceridade. Mas saiba que só pessoa que muito te ama pode ser tão sincera.
Do teu irmão amigo,
Luís
Maputo, 24 de Março de 2008
segunda-feira, 24 de março de 2008
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Linda estoria...algo puro DE IRMAO PARA IRMAO... a vida tem destas, o bom e' que ainda se consegue conjugar o passado vivendo o presente, assim aprendemoso quao e' impotante o sabor da vida e o respectivo segredo....
ResponderEliminarEste texto tem outro sabor num dos capitulos de um livro...ta lancado o desafio....
Um abraco
Ouri Pota
Conte-nos mais estorias bonitas como esta. Nos andamos a procura de referencias....
ResponderEliminarUma braco