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terça-feira, 19 de agosto de 2008

Juventude brasileira aposta na música antiga


De: Livia Deodato, do Estado de São Paulo
Eles têm entre 19 e 33 anos e os seus programas favoritos alternam entre bater um bom papo acompanhado de comidas saborosas e assistir filmes, principalmente europeus, no cinema e na televisão de casa, quando alugados.

O que diferencia estes jovens de outros mortais da mesma idade não é simplesmente o facto de se dedicarem à música há pelo menos dez anos, mas, sim, de terem escolhido dentro dela um gênero em que não existem - ou são raros - registos de gravações sonoras históricas, textos que contextualizem as obras, fotografias e meras descrições de como produzir som em determinado instrumento. Estamos a falar da música antiga, terreno até bem pouco tempo atrás explorado por contáveis músicos brasileiros, mas que parece ganhar força graças ao crescente interesse de jovens como os da foto (acima).
As histórias variam um pouco por causa das escolhas de instrumentos que fizeram quando ainda eram crianças - para Raí Toffoletto, de 20 anos, por exemplo, foi muito mais fácil aproximar-se do cravo, uma vez que estudou piano desde pequeno; ou para Leonardo Takiy, também de 20 anos, que desde os 7 se dedica ao violão e passou a estudar alaúde há um ano. Mas o motivo que os levou a se embrenharem num tipo de música desconhecida, até mesmo entre os seus pares, parece se resumir a um só: o amor à primeira vista pelas músicas compostas essencialmente na Idade Média, no Renascimento e no Barroco.
Música dos séculos 17 e 18
"Encantei-me muito mais pela música barroca do que pelo instrumento em si, no meu caso, o cravo, que tem um mecanismo muito difícil: possui um controle digital muito fino e não responde de acordo com o peso que você aplica sobre as teclas, como no piano", diz Toffoletto. "É como uma harpa mecânica", compara o oboísta barroco Gustavo Henrique de Francisco, de 29 anos. "Ou um bandolim de teclado", acrescenta, aos risos, o violinista barroco André Costa, de 19 anos. Frases que eles soltam a brincar e que demonstram a capacidade que já adquiriram de fazer livres associações e seguir um dos fundamentos mais importantes do legado da música antiga - o de ir além dos tratados deixados por estudiosos ao longo de todos estes anos. "O nosso desafio é reconstruir a música feita nos séculos 17 e 18 partindo de documentos históricos, plantas de instrumentos com medidas certas, interpretações sobre os contextos em que os compositores viveram. Mas nunca vamos saber se ‘soamos’ como antigamente. Temos a vivência do século 20, 21", diz a dulcista (quem toca flauta doce) Giulia Tettamanti, de 24 anos. Por isso é que dizem que o estilo que alimentam axtualmente deve ser correctamente chamado de música historicamente orientada ou informada.
Daquela época, outro ponto que também os fascina é a liberdade que possuíam os intérpretes sobre quaisquer obras e que, no século 19, perdem esse poder para os compositores. "Não queremos só ser ‘macaquinhos de repetição’ do que está ali impresso na partitura. Nos preocupamo-nos em pesquisar tudo o que estava por trás daquelas músicas", alfineta Toffoletto, muito discretamente. "É uma paixão mais intelectualizada e mais visceral", opina o flautista Camilo Di Giorgi, de 33 anos. A visceralidade a que ele se refere diz respeito, inclusive, a quatro tipos de "humores", aos quais os compositores se submetiam durante o processo de produção: sanguíneo, colérico, fleugmático e melancólico. Tudo em prol de que os discursos soassem persuasivos. No livro O Discurso dos Sons, o autor Nikolas Harnoncourt indica que se antes a música "era movimento e vida, hoje é algo simplesmente belo" e "quanto mais nos esforçamos para compreender e apreender esta música, mais percebemos quanto ela ultrapassa a beleza e quanto ela nos perturba e nos inquieta pela diversidade da sua linguagem".
Atrás exactamente disso é que estão esses jovens, cujas actuações já estão a marcar presença em festivais que igualmente proliferam por todo o País - e onde também descobrem talentosos parceiros e... futuros amores. Há histórias como a de Gustavo e Renata Pereira, casados há dois anos e meio, que se conheceram na Oficina de Música de Curitiba, em 2000; como a de Giulia e Toffoletto, que namoram há pouco mais de três semanas, desde que o Festival de Música de Londrina terminou; ou como o amor de Nathália Domingos, de 24 anos, e André Costa, que também nasceu na Oficina de Curitiba, só que na edição realizada em janeiro deste ano. Nem eles imaginavam que a música antiga fosse surtir tanto efeito.
Luthier, o ofício de Roberto Holz

Curiosidade, paixão pela música, pela forma do instrumento, pelo som produzido por ele ou simplesmente a completa impossibilidade financeira de adquirir um, o que os força a construir os seus. Os luthiers brasileiros que hoje se dedicam à refinada arte de moldar caixas e cilindros, transformando-os em instrumentos com características próximas dos que existiram nos séculos 17 e 18, não vêm de uma linhagem familiar tradicional dedicada ao ofício, nem ao menos receberam a bênção da própria família. "Sofri resistência da minha mãe, que é italiana, e meu pai, alemão, que viam com maus olhos a minha mudança de área (vivia da arquitectura) e acreditavam que aquilo tudo seria uma regressão", diz Roberto Holz, de 58 anos, que fabricou a sua primeira flauta doce em 1984 por diversão. "Era um desafio muito grande na época, porque a gente não tinha referência, não tinha onde comprar ferramenta. Mas como houve demanda, isso acabou me impulsionando. Animei-me e pensei que, se eu conseguisse vencer os obstáculos iniciais, poderia viver disso. Deu certo", afirma ele.
Luciano Faria, de 33 anos, que há pouco mais de 10 anos também vem se dedicando à luteria em Pirassununga, compartilhou dessa odisséia para fabricar o seu primeiro alaúde, que demorou seis meses para ficar pronto: "Usei um formão, um serrote, um martelo e uma plaina bem pequena e ruim", relembra hoje, aos risos. A aproximação com o alaúde aconteceu pelo facto de ter-se dedicado, durante toda a infância e adolescência, ao seu descendente, o violão. Com tanta vontade de tocar e pouco dinheiro para comprar, brotou a necessidade de criar. Apesar das suas vendas terem triplicado no Brasil do ano passado até agora, Faria afirma que 90% da sua produção ainda é destinada ao exterior. "Eu consegui ganhar estabilidade", conta ele, que trabalha com apenas dois assistentes. O luthier nascido no Rio acrescenta que, se pudesse, viveria uma semana como músico e a seguinte como mágico fazedor de instrumentos, mesmo tendo a certeza de que os sete dias como intérprete "não pagariam as minhas contas".
O jovem músico Leonardo Takiy, de 20 anos, que será bacharel em violão pela Unesp no ano que vem, esperou cerca de um ano pelo seu alaúde, encomendado a Faria. O luthier explica que a construção não demora (leva apenas cerca de 10 dias), mas o problema é a fila de espera. "Dos 50 a 60 instrumentos que fabrico por ano, cerca de 17 são para o Brasil." O perfil dos seus compradores varia bastante - vai desde estudantes de música, passa por músicos experientes e chega até a senhores idosos fascinados pela beleza dos instrumentos, ou seja, os coleccionadores. O professor Ricardo Kanji, da Universidade Livre de Música, onde desde março do ano passado funciona um Núcleo de Música Antiga (do qual muitos dos jovens músicos entrevistados são integrantes, entre eles, Takiy), sente que o interesse pela música antiga tem crescido não só entre alunos de música, mas também entre o público em geral.
Kanji, que faz parte de uma geração à frente desses meninos, é um dos responsáveis pela inserção da formação profissional em música antiga no País, ao lado de diversos outros nomes, como a musicista de viola da gamba Kristina Augustin e a alaudista Silvana Scarinci. Movimento que começou, timidamente, no fim dos anos 50 com o audacioso maestro Roberto de Regina. Até bem pouco tempo atrás, coisa de 20 anos, eles não tinham outra opção a não ser estudar e se profissionalizar no exterior. "Agora, os interessados em música antiga no Brasil vão estudar fora depois de já terem recebido uma boa formação aqui. E tudo isso graças a um movimento que partiu das pessoas e não do governo", sentencia Kristina.
Uma volta ao passado que diz muito sobre o presente, por João Luiz Sampaio
Foi durante a digressão latino-americana do conjunto Les Arts Florissants, dedicado à pesquisa da música barroca. Pouco depois da meia-noite, o lobby de um hotel em Montevidéu foi inundado por canções de Gershwin. Depois do estranhamento, a confirmação - os mesmos músicos que horas antes haviam dedicado um concerto à música de Charpentier agora improvisavam e se divertiam com standards da música americana. No dia seguinte, perguntei ao maestro do grupo, o norte-americano William Christie, como unir o rigor da música historicamente informada com a liberdade do jazz. "E por que não?", disse.
A história revela um pouco das muitas facetas da corrente da música historicamente informada. Iniciado nos anos 50 e intensificado nos anos seguintes, o movimento significou a volta ao passado num momento em que a música contemporânea afastava os intérpretes. Essa volta era incondicional - o que interessava, acima de tudo, era recuperar as técnicas de interpretação da época em que as obras eram escritas. Autenticidade foi palavra de ordem e, de uma hora para outra, tocar Bach, Mozart e Charpentier com instrumentos modernos passou a soar como heresia.
Há um rigor subentendido nesse processo de pesquisa, em que o músico precisa se despir das técnicas, estilos e convenções da sua época e viver, ao menos musicalmente, em séculos passados. No entanto, estamos a falar de aproximações. Fazer música é fazer escolhas - e o estudo da história apresenta lacunas que precisam ser preenchidas por quem hoje olha para trás. No melhor dos mundos, essa volta ao passado acaba dizendo muito sobre a nossa própria época.

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