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Cascatas da Namaacha: sete anos depois da seca

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Leia trecho de 'O Africano', um romance de Le Clézio

O Africano é um livro ilustrado com fotos do arquivo particular do seu autor, o agora Prêmio Nobel de Literatura Jean-Marie Gustave Lé Clézio, e conta uma história com traços ficcionais e auto-biográficos narrada por um homem que reconstitui o percurso do seu pai como médico militar nas colônias inglesas em África e ao mesmo tempo procura entender a sua infância passada entre a Europa e o continente africano.

Leia trecho do primeiro capítulo:

“A África era mais o corpo que o rosto. Era a violência das sensações, a violência dos apetites, a violência das estações. A primeira lembrança que tenho deste continente é a de o meu corpo coberto por uma erupção de bolhinhas causadas pelo extremo calor, uma afecção benigna de que os brancos sofrem quando chegam numa zona equatorial, com nomes cômicos como brotoeja ou borbulha. Estou na cabine do navio que avança lentamente pela costa, ao largo de Conakry, Freetown, Monróvia, nu na caminha, a escotilha aberta ao ar húmido e o corpo polvilhado de talco, com a impressão de estar num sarcófago invisível ou de ter sido apanhado como um peixe em puçá e passado na farinha antes de ir à fritura. A África, já me tirando o rosto, dava-me um corpo dolorido e febril, esse corpo que a França me ocultara na doçura anemiante da casa de minha avó, sem instinto, sem liberdade.

O que eu recebia no barco que me arrastava para aquele outro mundo era também a memória. O presente africano apagava tudo que o tinha precedido. A guerra, o confinamento no apartamento de Nice (onde, nos dois cômodos de uma espécie de água-furtada, éramos cinco a viver, aliás seis, contando a empregada Maria, de quem minha avó resolvera não abrir mão), as rações, ou então a fuga na montanha, onde minha mãe se escondia por medo de ser levada pela Gestapo - tudo isso se apagava, desaparecia, tornava-se irreal. Daqui em diante, para mim, só existiria antes e depois da África.

A liberdade, em Ogoja, era o reino do corpo. Ilimitado, o olhar, do alto da plataforma de cimento na qual fora construída a casa, semelhante ao habitáculo de uma barcaça sobre o mar de capim. Se faço um esforço de memória, posso reconstituir as fronteiras vagas desse domínio. Alguém que
houvesse conservado a memória fotográfica do lugar se espantaria com o que um menino de oito anos era capaz de aí ver. Um quintal, sem dúvida, não um jardim recreativo - existiria nessa terra alguma coisa que fosse para recreação? Era mais um espaço utilitário, onde o meu pai tinha plantado fruteiras, mangueiras, goiabeiras, mamoeiros, e que servia de cerca-viva diante da varanda, laranjeiras e limeiras cujas folhas, quase todas, as formigas uniam para fazer ninhos aéreos, repletos de uma espécie de penugem felpuda que abrigava os seus ovos. Em algum canto, mais para trás da casa, no meio do matagal, um galinheiro onde coabitavam galinhas e galinhas-d'angola e cuja existência não me é assinalada senão pela vertical presença no céu de abutres nos quais o meu pai, de vez em quando, atirava com a carabina. Mas digamos que fosse um jardim, já que a um dos empregados da casa cabia o título de garden boy. No outro extremo do terreno é que deviam ficar as choças dos serviçais: o boy, o small boy e sobretudo o cozinheiro, de quem minha mãe gostava e com quem preparava, em vez de pratos à francesa, a sopa de amendoim, as batatas-doces assadas ou o fufu, uma papa de inhame que era o nosso trivial. De quando em quando minha mãe se lançava a experiências com ele, fazendo compotas de goiaba, mamão cristalizado ou ainda sorvetes de frutas não cremosos que ela batia à mão. Nesse quintal, sempre havia crianças, em grande número, que chegavam pela manhã, todos os dias, para conversar e brincar, e das quais só nos separávamos ao cair da noite.

Tudo isso poderia dar a impressão de uma vida colonial muito organizada, quase citadina - ou pelo menos campestre, à moda da Inglaterra ou da Normandia de antes da era industrial. No entanto era a liberdade total do corpo e do espírito. Diante da casa, na direcção oposta ao hospital onde o meu pai trabalhava, começava uma extensão sem horizonte, com uma ligeira ondulação onde o olhar podia se perder. Ao sul, o declive conduzia ao vale nevoento do Aiya, um afluente do rio Cross, e às aldeias, Ogoja, Ijama, Bawop. Para o norte e o leste, eu podia ver a grande planície amarelada, pontilhada de colossais cupinzeiros, cortada por arroios e brejos, e o começo da floresta, as matinhas de gigantescos irokos e okumés, tudo coberto por um céu imenso, uma abóbada de azul muito forte onde o sol ardia e que era invadida, todas as tardes, por nuvens que traziam tempestades.

Lembro-me da violência. Não uma violência secreta, hipócrita, aterrorizante, como a conhecida por todas as crianças que nascem no meio de uma guerra - sair às escondidas, espiar os alemães de capote cinza a roubar os pneus do De Dion-Bouton de minha avó, ouvir remoer num sonho as histórias de tráfico, espionagem, expressões dissimuladas, mensagens do meu pai vindas por intermédio do cônsul dos Estados Unidos, Mr. Ogilvy, e sobretudo a fome, a falta de tudo, o diz-que-diz sobre as primas da minha avó se alimentando de cascas. Aquela violência não era realmente física. Era velada e oculta como uma doença. Minando-me o corpo, causava-me acessos incontíveis de tosse e dores de cabeça tão fortes que eu até me escondia, punhos enfiados nas órbitas, sob a longa toalha da mesinha de canto.

Ogoja dava-me outra violência, real, às claras, que fazia vibrar o meu corpo e era visível em todos os detalhes da vida e da natureza circundante. Temporais como depois nunca vi, nem sequer em sonho, o negrume do céu zebrado pelos raios, o vento que envergava as grandes árvores ao redor do quintal, que arrancava as palmas do tecto, rodopiava na sala de jantar, passando por debaixo das portas, e apagava os lampiões a querosene. Algumas noites, um vento vermelho, vindo do norte, dava brilho às paredes. Uma força eléctrica que eu tinha de aceitar, de domar, e em relação à qual minha mãe inventara uma brincadeira, contar os segundos que nos separavam do impacto do trovão, ouvi-lo aproximar-se, quilômetro após quilômetro, e depois se afastar para as montanhas. Uma tarde, quando o meu pai operava no hospital, um raio entrou pela porta e, sem barulho, se difundiu pelo chão, derretendo os pés metálicos da mesa de operação e queimando as solas de borracha das sandálias dele; depois o raio recompôs-se e, como um ectoplasma, fugiu por onde havia entrado para reintegrar-se ao fundo do céu. A realidade estava nas lendas.(X)

1 comentário:

  1. PRESIDENTE BARACK OBAMA
    Afro-América: Um Negro Afrodescendente no Poder dos Estados Unidos

    “Deus não joga dados”

    Albert Einstein


    Depois de um operário metalúrgico (que foi perseguido, preso e condenado por uma ditadura militar incompetente, corrupta, violenta e senil) no maior país da sulamérica de áfricas utópicas, dando um show no poder do Brasil S/A, surpreendendo o mundo inteiro que elogia o Lula Light que tem um anjo no ombro direito como disse uma rainha européia, afinal, um negro vence as eleições para presidente nos Estados Unidos, e assombra o planeta todo pela conquista histórica. Num país extremamente racista, terra de Luther King, Barack Obama chega ao poder e enche a terra de homens livres de esperança por atacado. Será o impossível?

    A América Rica respira luz. A América Pobre espera e confia. O câncer que o funesto neoliberalismo se tornou, uma falsa lei de oferta e procura (o crime lesa-pátria do camuflado livre mercado), máfias e quadrilhas no capitalhordismo americanalhado, depois do pior presidente que os EUA teve, o clã Bush que faliu o país, a esperança finalmente se renova com um negro de origem afromuçulmana de quilate e uma história surpreendente de evolução, determinação, estudos e grandeza limpa.

    Parece um filme de Hollywood. Com roteiro de Monteiro Lobato.

    Esperamos mudanças. Sim, nós também podemos sonhar com mudanças que ativem qualidades humanas e princípios de humanismo de resultados. Desde o fim do papel de xerife do mundo que os EUA presunçosamente ostenta, desde a abertura ampla e irrestrita do mercado interno para um globalizado mundo de países emergentes como o Brasil, desde o fim do boicote insano à Cuba, até a criação de um projeto de Fome Zero a nível Mundial. Ou, muito pelo contrário, talvez, nem tanto. A política econômica dos EUA é algo engessada, numa estranha democracia de só dois países se revezando no poder, mas, Barack Obama, advogado, negro, protestante que estudou o islamismo, de origem africana pobre, com uma portentosa primeira dama a lhe dar suporte e estrutura, talvez ainda assim e por isso mesmo possa finalmente impor seu estilo e ritmo todo particular de ser, todo pessoal.

    As midiáticas aves de mau agouro, no entanto, como bruxas do retrocesso, aventam com a probabilidade do presidente negro vir a ser assassinado. Além de nebulosas lendas a respeito do presidente negro, coisa de reacionários de lá e de cá, mentes pequenas. A triste história se repetirá com Barack Obama também, a partir de poderosos feudos racistas do país mais rico do mundo, que tem a clandestina Klux-Klux-Klan? O mundo está de antenas ligado. Um novo ciclo se inicia.

    No lumiar do terceiro milênio, a esperança se renova.

    Só nos resta sonhar. Eu tenho um sonho, como Mártir Luther King. As comparações são inevitáveis. Eu era um guri que amava os Beatles e Tonico e Tinoco, e era contra o agente laranja na guerra do Vietnã, quando o grande líder negro dos direitos civis nos EUA foi morto e na verdade nunca se puniu o verdadeiro mandante, como também no caso dos Kennedys e outros.

    Que a América Rica em vez de impor sua vontade de império bélico e econômico ao mundo (também em fase de mudanças radicais para melhor em todos os sentidos), parta para princípos éticos-humanitários de rever condições sazonais, atue em negociações honestas de campos diplomáticos, pense em seres humanos, não em estatísticas de bolsas de valores ou índices de crescimentos unilaterais em enriquecimentos ilícitos impostos por neoliberais, principalmente.

    E que, em vez de mandar bombas para o Afeganistão, Irã ou Iraque, mande o seu famoso padrão de vida, de qualidade. Imaginem só – eu tenho um sonho (sonhar pode, Lennon?) – aviões norte-americanos de última geração, “bombardeando” países pobres ou com graves problemas, inclusive de fanatismo religioso ou ortodoxia marxista utópica, com tvs, i-podes, mpb-tantos, lap-tops, dvds, além de blues, filmes, hot-dogues, cokes, calça jeans, hambúrgueres, jipes da ford. Quem não quer?

    Daremos nossa cota de dor aos brancos anglo-saxônicos?

    O mundo espera e confia. Como um estudioso e pensador, sonho, teimo, avalio, mas pressinto, e estou de butuca, sondando o devir, mas torcendo a favor, claro. Quando dá lucro é privado, quando dá errado é público? Tô fora. Vade retro. Como disse o Lula Light quase vinte atrás, prefiro um capitalismo onde aquele que fabrica o carro também possa comprar um. Já pensou? Você pode sonhar comigo.

    O mundo espera e confia. Que Barack Obama, estrela democrata seja o que se espera dele, e faça o mundo sonhar com uma paz cantada por John Lennon, e almejada por todos os povos. Que ele seja o fermento da mudança desejada, o sal entre as sepulturas mal-caiadas dos podres poderes insanos no planeta globalizando a sua economia mundializada só para alguns new-richs. Um índio, um religioso, uma mulher, um metalúrgico e agora um negro. Barack Obama será o inicio de um novo ciclo.

    Conseguirá ele tirar o decrépito EUA das cinzas da história, das sombras de corrupções e roubos bancários legadas pelo Clã Bush et caterva? Sim, porque recebe a herança maldita do clã Bush, o pior presidente que o país teve, ou também pagará o amargo preço que a história racista dos EUA impõe ao país, entre imigrantes segregados, pobres abandonados à própria sorte, feudos de miséria e exclusão social, modelito canhestro copiado pela américa pobre de tantos ameríndios e afrodescendentes entregue à própria sorte? A sorte está lançada.

    No Cassino do Humanus Mundi somos todos da espécie humana.

    Que na terra dos homens livres, um negro digno brilhe como o Metalúrgico Lula no Brasil de tantas esperanças revisitadas.

    Afinal, a esperança é a inteligência da vida.

    -0-

    Silas Correa Leite – Poeta, Professor, Conselheiro em Direitos Humanos (SP)
    E-mail: poesilas@terra.com.br site: www.itarare.com.br/silas.htm
    Autor de Porta-Lapsos, Poemas, e Campo de Trigo Com Corvos, Contos.
    Texto da Série: “Toda História é Remorso” Artigos, Ensaios, Bravatas, Panurgismos e Esperança de Humanismo de Resultados.

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